Estou há semanas tentando começar a escrever o projeto do doutorado. Cada pedacinho do meu corpo dói e os mosquitos do Jardim Botânico estão me comendo viva. A vira-lata Kate já foi contaminada pelo meu mau humor e me encara deprimida, como se entendesse. Fato que entende. A casa está uma zona e nem deveria, porque não saio daqui, mas vou empurrando a roupa suja pra depois porque estou ocupada não escrevendo o projeto e enviando mensagens no whatsapp pra tentar evitar que meu pai vote no candidato fascista.
Sinto como se estivesse congelada, mas se faço o exercício recomendado pela analista, de listar as coisas que consegui realizar ao longo da semana, concluo que não. Consegui ir à PUC buscar uns documentos e passar na biblioteca, mesmo que tenha quase perdido meu notebook no processo, de tão fora do ar que estou. Consegui ir ao supermercado e tirar a 3x4 necessária para fazer a inscrição. Foram os dezessete reais mais mal investidos do mês, diga-se de passagem. A atendente de uma das últimas lojas de revelação do Rio me mandou ficar de costas pra uma parede branca toda suja, sacou uma máquina fotográfica digital pior que a do meu iphone 7 e estourou displicentemente um flash na minha cara de enterro; cara de quem tinha acabado de ver a última pesquisa do ibope, cara de quem já tinha aceitado que muito em breve estaria tomando porrada da polícia. Meus pais acham que é exagero. Com a minha boca suja? Não me dou dois meses.
Então claramente estou conseguindo fazer alguma coisa, mas a verdade é que estou puta da vida comigo, porque não estava nos meus planos escrever o projeto assim. Nem sei o que quero dizer com assim, o que aliás já é um excelente flagrante. É que a única razão que me levaria a escrever um projeto tradicional hoje seria o medo. Medo de não gostarem. Medo de não ser aprovada. O que me parece risível diante do medo maior que ando sentindo. Então vai assim mesmo, que é como eu me comunico melhor. Até porque eu bem me lembro, numa distante banca de seleção do mestrado, dos professores dizendo que eu escrevia muito bem, obrigada, mas que precisava encontrar minhas voz. Engraçado que na internet geral está sempre dizendo o contrário - que dá pra me ouvir falando em tudo que escrevo. Devo ter aprendido, vai saber.
Fico aqui pensando se seria possível ainda um discurso acadêmico tradicional quando acordo todos os dias e a primeira coisa que encaro é uma tela emoldurada em azul, com uma audiência infinita e virtual do outro lado, me alfinetando: “No que você está pensando, Luiza?” Amigo - don’t get me started. Tudo é verdade. Nada é verdade. Salve-se quem puder. A gente passa o dia inteiro fazendo performance nas redes sociais; a escrita acaba se viciando, não tem pra onde correr. A nossa vida vai inevitavelmente acabar se misturando com os nossos objetos de estudo na academia, e a escrita vai junto.
Daí que eu acho que seria tão feliz se passasse os próximos quatro anos tentando entender por que tem tanta gente produzindo ficção de dentro dos departamentos de letras, e no lugar de teses e dissertações. Começando obviamente por mim, que nunca consegui fazer de outro jeito, passando pela experiência da PUC-Rio, que me formou, e olhando pras outras muitas universidades onde isso tem acontecido Brasil afora.
Não sei se ficou 100% claro. Provavelmente não. Acontece que hoje são 25 de outubro de 2018 e eu, que nasci na redemocratização e estudei a história do século XX como quem estuda a extinção dos dinossauros, não estou concatenando muito bem.